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quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Livros que nos devoram

Pretérito Perfeito


                Vasco é um homem de 33 anos, que tem da tenra juventude e da infância as memórias mais acesas, um homem que carrega a inocência dessas vivências e a fragilidade de alguém que sabe que tem os dias contados. Talvez por isso o sintamos, não homem, mas menino.
                É pela voz do próprio Vasco que, desde as primeiras páginas, entramos na sua casa e seguimos até ao terraço, onde nos sentimos a salvo, na hora em que o sol se põe sobre o Tejo. São também as palavras deste homem-menino que nos conduzem pelo Outono de Lisboa, pelos bares da moda de outros tempos, ou por outros lugares que a sua cultura e curiosidade evocam.
                À medida que a narrativa se tece, umas vezes num estilo torrencial, outras ritmado, quase musical, tornamo-nos cúmplices de Vasco. Cúmplices das memórias, do seu quotidiano e - muito - da sua dor, do desespero, do vazio. Vasco deixa de ser, a certa altura, apenas a personagem, para ocupar o lugar do amigo de infância, do vizinho que viveu sempre ao nosso lado, com quem trocámos cromos, livros, discos ou palavras, nas escadas do prédio, noite dentro. Aliás, ao longo da obra, deparamo-nos frequentemente com referentes da infância e da adolescência que são também os da minha geração: Mário de Sá-Carneiro e o seu poema “Fim”, músicas dos Xutos ou dos UHF, o Verão Azul, o Lucky Luke, uma lengalenga infantil, etc.
                Como se sabe sem futuro e como o presente é um espaço de dor e de expectativa, acaba por centrar grande parte do seu relato num passado que foi feliz e pleno em vivências, desde as brincadeiras de rua com os vizinhos à descoberta do amor, em Trás-os-Montes, com Isaura, que lhe ensinou não só o amor, como despertou nele o gosto pela poesia e pela literatura em geral.
                Trás-os-Montes, onde ele regressa com o pai para ir buscar os avós e as couves para o Natal, é, como a casa de Lisboa, um espaço de afectos.
                Há, em Vasco, uma sensibilidade que decorre da sua formação como músico, mas também do ambiente de afecto em que sempre viveu e que a doença apura. Torna-se, por isso, mais atento aquilo que o rodeia: aos pormenores, aos gestos e às conversas dos vizinhos, à dor daqueles que ama.

                Pretérito Perfeito, publicado em Setembro de 2013, pela Editoral Estampa, é o segundo romance de Raquel Serejo Martins, uma transmontana (Vilarandelo, Valpaços) que vive na capital.


Proposta de Luísa Félix, segue-a no seu blogue, Letras são papéis.

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