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terça-feira, 24 de junho de 2014

Estes números que nos colhem

Começo por dizer que, não vivemos num mundo complicado. A economia mundial é que, entretanto, se complicou. Será da globalização? Talvez. Mas o problema, ou o cerne da questão é, no meu ponto de vista, bem mais simples do que complexo.

Alguém dizia há alguns dias atrás, que os números certo dia irão acabar por matar as palavras.

Eu acrescentaria que é inegável perceber-se que os interesses económicos de uma dada minoria, se estão a sobrepor paulatinamente e de uma forma crescente, sobre as pessoas, os seus hábitos, costumes, valores, direitos, entre outras coisas que dizem respeito à vida particular de cada um. Mas o paradigma mudou, radicalmente, acrescentaria. 

O que mudou em concreto para que se tenha dado uma cisão tão perentória no paradigma social das chamadas sociedades modernas? Há algumas boas razões, a meu ver, que o justificam. Senão vejamos, regressando à ideia da globalização, não sem antes, perceber o que significa tal propalada palavra. Segundo a definição patenteada em alguns apêndices económicos, poderemos defini-la como: um fenómeno ou processo mundial de integração ou partilha de informações, entre as diversas culturas e mercados. 

Centremo-nos então agora, numa espécie de exercício reflexivo acerca do campo lexical: “Mercados”. Já todos certamente demos conta que, num espaço de 6 a 7 anos, se instalaram entre nós, demasiadas palavras advindas da palavra-chave: “Mercados”. 

A comunicação social em geral tem-nos bombardeado com diversos termos ou analogias a este campo lexical em concreto, difundindo de forma exaustiva algumas palavras e ou siglas, como: “Euribor”, “Agências de Rating”, “Subprime”, “Psi-20”, “FMI”, “Troika” “Taxas de juro”, “PPS” “Dívida pública”, “Austeridade”, etc.

Vejamos então o fulcro da questão. Alguém se lembra da queda e falência do segundo maior banco norte-americano? Para quem não se recorda da notícia, relembro que se chamava Lehman Brothers, tinha 158 anos de idade e acabou por não resistir à chamada crise dos mercados de crédito imobiliário (comummente designados de “alto risco”). 

O banco perdeu cerca de 3,9 mil milhões de dólares (2,7 mil milhões de euros) no terceiro trimestre de 2008, depois de ter sofrido fortes depreciações nos seus activos ao nível do seu portefólio de créditos imobiliários. Num ano, o banco caiu 90% em bolsa, algo que poderia considerar-se impressionante à data, ficando registada como a maior falência de toda a história norte-americana, tendo sido inviabilizada a sua recuperação por decisão do próprio senado e administração central norte-americana. Hoje há quem aponte para este colapso económico, considerando-o mesmo como um marco ou princípio do fim de uma realidade que permitiu abrir o caminho para o actual paradigma social e económico mundial em que todos vivemos. Mas o que mudou afinal a partir desta data?

Simples: a confiança. A mesma que, a titulo particular da vida de cada um de nós, é considerada como um elemento basilar, dir-se-ia fundamental até, para que possamos viver em harmonia com nós mesmos e com os outros. O mesmíssimo principio se aplica, claro está, aos próprios “Mercados”. Assim se perdeu a confiança, entre a pequena minoria (leia-se interesses e investidores imobiliários, banca internacional, grupos empresariais, bancos federais, banco central europeu, etc.) de interesses que, na verdade, se organizam estrategicamente numa enorme rede financeira mundial, orientada sob um mesmo princípio ou interesse comum: a obtenção do lucro.

Tudo se centrará então numa questão meramente economicista de determinados agentes estrategicamente organizados em volta dos números, lucros, rendimentos e outro tipo de interesses directamente ligados à criação de riquezas e ganhos puros e simples.

Nesta complexa teia de interesses (e aqui sim, começa a desenhar-se uma espécie de polvo gigante, com enormes tentáculos que se movem em prol dos seus lucros) onde não há lugar aos interesses das pessoas, aos bens comuns ou a uma certa ideia de interesse público e social, para o qual todos contribuímos com os nossos pesados impostos. E é aqui que gostaria de centrar este artigo de opinião, ou seja, na mudança de paradigma implementada um pouco por toda a europa e pelo mundo, incluindo o caso concreto do nosso pequeno Portugal.

Ao olharmos para o nosso país em concreto, percebemos que talvez tenhamos sido levados a acreditar em determinadas realidades que na verdade em nada coincidem com a realidade dos factos. Refiro-me concretamente ao facto de nos quererem vender a ideia que os portugueses se endividaram em demasia, que viveram acima das suas possibilidades, e por isso mesmo agora, há que arcar com as consequências da dívida pública. Aproveito para realizar um pequeno parêntesis para esclarecer que, eu nunca vivi acima das minhas possibilidades, que sempre geri o meu orçamento de uma forma esclarecida e responsável, contribuindo sempre de forma consciente e séria com os meus impostos, estando por isso completamente à vontade para poder opinar acerca desta problemática concreta.

Mas retomando o raciocínio, diria que, se de facto vivemos acima das nossas possibilidades, quer-me parecer que a tutela deveria ter a sensatez de nos facilitar a vida, reduzindo os nossos impostos, por forma a suavizar as dificuldades porque hipoteticamente passamos. Mas a realidade que todos tão bem conhecemos, foi precisamente em sentido contrário, ou seja, ainda nos dificultaram mais a vida sobrecarregando-nos com o aumento generalizado dos impostos, congelamentos e outro tipo de taxas pesadas, que para tantas famílias se tornaram mesmo insustentáveis.

Perguntamos: Quem está a lucrar com a actual conjuntura do “aperto do cinto”? 

Estará assim tão difícil de perceber quem são aqueles que mais lucram directamente com as actuais políticas de austeridade?

Na minha opinião ficou bastante clara esta questão, quando em 2011, foi forçada a entrada do FMI em Portugal. Uma classe política sem escrúpulos, sentido de nação ou estado, derrubaram pura e simplesmente um governo, já por si instável, para ceder aos interesses económicos a quem serve perfeitamente este cenário de resgate financeiro.

E o que lucramos nós, sociedade comum com tal facto? Pois, nada. Obtivemos absolutamente o seu contrário, ou seja, aquilo para o qual já estamos todos devidamente familiarizados:

Desemprego, salários baixos, emigração, cortes nos principais sectores do estado (leia-se saúde, educação, justiça, segurança, entre outros interesses que são considerados bens comuns essenciais para toda a sociedade civil) entre outras repercussões laterais que atingiram directa ou indirectamente os sectores da construção cívil, a indústria fabril, o comércio e os serviços hoteleiros, da restauração e afins.

Quem está então a tirar proveito do empobrecimento social implementado em Portugal através das políticas de austeridade introduzidas pela “troika”? 

Estará assim tão difícil de ver meu caro leitor? Não, não está. 

Vejam-se e revejam-se todos os acordos e rendas estabelecidos pelos sucessivos governos deste país, nos últimos vinte anos, através das chamadas “PPP” (parcerias público-privadas). Analisem-se estes casos um a um, para que se comecem a dissipar todas as dúvidas. 

Mas será que há algum interesse por parte do estado em revelá-lo? Obviamente que não.

Então perguntamos: mas porquê, se afinal se tratam de situações altamente lesivas para o estado português e em última análise para os nossos impostos ou mesmo para a garantia e estabilidade dos nossos postos de trabalho, criação de riqueza e desenvolvimento económico? 

Pois. Não fica muito difícil de perceber, certo? É chegada a altura certa para repetir a frase inicial deste artigo: “nós não vivemos num mundo complicado. A economia mundial é que, entretanto, se complicou” acrescentando eu que, se complicou sim, e muito, apenas para os mais fracos, ficando então com os lucros os mais fortes, ou seja, a tal minoria, mas muito poderosa, que não é mais do que uma espécie de máfia financeira à escala mundial.

Haverá maior negócio do que este, que afunda um país (baseado em cotações e taxas de “rating” e outros artifícios económicos) para depois ser “invadido” pela força do lucro capitalista de todo um sector financeiro altamente ganancioso?

Torna-se complicado, se calhar, quando tentamos dissecar um polvo que se movimenta tão agilmente diante dos nossos olhos.

Preciso referir nomes? Muito bem, cá vão alguns: “BPN”, “Banif”, “CGD”, “BES”, “BCP”, “BPI”, “EDP”, “BRISA”, “AENOR” “ASCENDI” “AENOR”, “Auto-Estradas do Atlântico, S.A.”, “EUROSCUT”, “NORSCUT”, “SCUTVIAS”, “REN”, “LUSOPONTE”, etc.

Relembro os mais incautos que há cerca de três anos atrás, foi realizado um estudo ou levantamento em Portugal (pelo Diário de Notícias) acerca de todas as parcerias público-privadas, fundações, agências e inúmeros observatórios nacionais, tendo-se concluído na altura que o estado português pura e simplesmente desconhece os totais dos valores gastos nesta complexa teia de interesses que apenas serve a alguns e, claro está, falamos uma vez mais de uma poderosa minoria de interesses instalados em volta dos nossos impostos.

E depois os endividados somos nós!? Não. Mas é como se fossemos, pois como bem se sabe, é para nós que sobra sempre a factura. O ónus de uma dívida que não foi, nem nunca será, promovida por quem trabalha e paga escrupulosamente os seus impostos neste país.

Conclusões? Muitas e tão poucas. Apenas desmistificar que, o principal mal vem de fora para dentro. Quero com isto dizer que, todo aquele que se movimente em volta das nossas carcaças, das nossas vidas, vindo de fora, não traz nenhuma outra intenção senão a de nos subtrair alguma coisa. Perceber ainda que, talvez a entrada na zona euro e na respectiva moeda única, tenha sido provavelmente, o maior erro cometido em Portugal nos últimos oitocentos anos. Porque na verdade, a ambição de querer pertencer a uma moeda forte como é o caso do euro, não nos beneficiou em absolutamente nada, porque nos encontramos inseridos num mercado à escala mundial, sendo que a nossa pequena economia representa ser uma presa demasiado acessível para esta complexa máquina económica, inóspita e insensível, à qual não lhe interessa saber qualquer tipo de realidade social, onde se engloba toda uma geração de jovens desempregados, sem perspectivas de emprego, sendo forçados a emigrar, até por via do próprio aconselhamento governamental!

Caricato? Será, caro leitor? Ou talvez não!

Torna-se urgente, em jeito de remate, acordar toda a gente para esta realidade, que nos suga a riqueza do nosso país. Torna-se urgente consciencializarmo-nos todos e cada um da importância desta missão difícil que temos entre mãos. Consciencializar os jovens que o futuro que nos tentaram roubar é possível de tornar a ser resgatado. 

O futuro é de todos nós, por isso é urgente passar a palavra e desmontar esta intrincada teia de interesses e mentiras, com que nos tentam emaranhar, para depois sermos todos engolidos não como pessoas, mas antes como números, que nos colhem sem palavras nem outras poesias.


Miguel Pires Cabral

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Undenied Pleasures #2



Quase três anos após o lançamento de "Black Sands", surge em 2013 "The North Borders". Este trabalho é descrito como uma evolução natural e uma continuação da electrónica de "Black Sands". Um álbum temático, viciante e coerentemente fabuloso, como podemos comprovar com este primeiro single "Cirrus".
Bonobo está aí para as curvas e a julgar pelo que ouvi, ainda bem que assim é. Mais um ponto para a Ninja Tune.
"The North Borders" sairá no dia um de Abril deste ano.


terça-feira, 17 de junho de 2014

SCREEN SHOT n.º 2

(Screen Shot é escrito segundo a nova variação ortográfica.)





"WE DONT NEED ANOTHER HERO" (não precisamos doutro herói) parece ser uma das fórmulas mais usadas naquilo que toca à produção de cinema fantástico e de super-heróis. Temos este ano um vasto leque de ofertas em termos de filmes deste género a começar por um remake do clássico RoboCop (1987) de Paul Verhoeven. Todos o terão visto e revisto nos anos noventa e surge agora, 26 anos depois, adaptado às novas tecnologias em efeitos especiais. Em grande parte a versão mais recente tende a manter o conceito do original, apresentando por vezes uma nova interpretação dos factos e um olhar mais "atual". Já tinha acontecido noutros casos como é exemplo Total Recall (Desafio Total - 1990) original de Paul Verhoeven e a versão homónima de 2012 de Len Wiseman carregado de efeitos visualmente atraentes na versão com Colin Farrell no papel de Denis Quaid. O original é na grande parte das vezes o preferido e acontece o mesmo tanto neste filme como em Robocop (2014) de Joel Kinnaman. Nos remakes, bem como nas sequelas (Robocop teve duas: RoboCop 2 (1990) - Irvin Kershner - e RoboCop 3 (1993) - Fred Dekker) - tende a haver uma suspeita de que o objetivo é arrecadar mais lucro nas bilheterias de um sucesso já conseguido. Comprova-se com a estreia de mais uma sequela de The Amazing Spider-Man  (O Fantástico Homem-Aranha) (a sequela de um remake  -  o exemplo literal de uma divergência de interpretação da estória original) com  Captain America: The Winter Soldier (Capitão América: O Soldado do Inverno) e ainda o recente episódio de X-Men: Days of Future Past (X-Men: Dias de um Futuro Esquecido) de Matthew Vaughn, ambos com uma produção visual fantástica. Na saga de  Batman surge  a mesma divergência  que após entrar em decadência com Batman Forever (Batman para Sempre - 1995) e Batman & Robin (1997) de Joel Schumacher, renasce nas mãos de  Christopher Nolan numa triologia fantástica e intensa. O mesmo sucesso acontece em Superman (Super-Homem - O Filme) mantendo intacta a personagem mítica de Christopher Reeve (o verdadeiro Superman em todos os aspetos) com a reformulação visual e de argumentos para Man of Steel (O Homem de Aço) surgindo filmes de boa qualidade e fiel ao símbolo de um dos expoentes máximos do Fantástico.
De regresso anunciado e cheio de destruição está Godzila pelo olhar de Gareth Edwards. Gojira (O Monstro do Oceano Pacífico), no original japonês, o maior dos monstros, chega-nos cheio de força massiva capaz não só de ameaçar a raça humana bem como todos os seus filmes precursores com uma potente composição visual e sonora, assim como suspense fortes.
E quando se pensa que já nada de novo se cria, ou que como é mais fácil recriar algo que é bom opta-se por fazê-lo de novo modificando-o, conseguimos perceber que, ainda assim, e mesmo conhecendo a história, algo de notório e inesperado acontece e nos surpreende. E do nada, sem querer, surge o maior herói de todos os tempos.
O Homem.
Noah (Noé) de Darren Aronofsky



EXPECTATIVA

Como grande fã de filmes do género não poderia deixar de referir a grande expectativa de estreias que se avizinham não só pelos títulos mas também por alguns dos seus realizadores e esperar que correspondam à magnitude do nosso imaginário.
São estes os destaques:
Transformers 4: Age of Extinction (Transformers: Era da extinção) - Michael Bay
Resident Evil: Rising - Paul W. S. Anderson
Teenage Mutant Ninja Turtles - Jonathan Liebesman

Outras Sugestões:
Chef (O Chef) - Jon Favreau
Transcendence (Transcendence - A Nova Inteligência) - Wally Pfister
Divergent (Divergente) - Neil Burger
Under the Skin (Debaixo da Pele) - Jonathan Glazer
The Grand Budapest Hotel - Wes Anderson

Mestre criador de Princess Mononoke (Princesa Mononoke - 1997), Spirited Away (A Viagem de Chihiro - 2001), e Howl’s Moving Castle (O Castelo Andante - 2004), Hayao Miyazaki diz que The Wind Rises (As Asas do Vento) é a sua despedida do cinema. Interpretado por Joseph Gordon-Levitt, dá a voz nesta animação a uma representação biográfica de Jiro Horikosh, que em pequeno sonhava voar pelos céus e visto a sua incapacidade de o fazer passou a sua vida a desenhar o avião perfeito.
Diferente do estilo fantasioso que originou e o projetou em Tonari no Totoro (O Meu Vizinho Totoro - 1988), mas mantendo o mesmo traço, este trabalho final deixa em aberto o futuro para o realizador e o que ele nos trará. Acreditando que permanecerá fiel aos lemas que o inspiram, são muitas as pessoas que vêem este final anunciado reverter no início de uma nova jornada que com confiança e um sorriso esperamos.



OST

A diferença entre um grande momento e um momento perfeito está muitas vezes associada à banda sonora que o acompanha. Como um belíssimo pôr-do-sol com amigos depois de uma tarde bem passada que por si só já é grandioso, pode ainda assim ser enaltecido por uma música que nos una a todos com aquele momento.
No caso dos heróis não é diferente. Quantas vezes, enfrentando grandes perigos e nos momentos mais difíceis em que lutam pela própria vida, reanimam com o sopro dos trompetes e ao toque dos tambores a bombear de novo o sangue ganham forças para regressar à luta numa apoteose musical. É grande o poder que tem a música na sustentação do poder do herói, surgindo mesmo como uma “imagem” de marca, uma identidade.
Aqui se refletem alguns desses exemplos.


Robocop


Superman


Batman


Flash


Hulk


SOM E VÍDEO
Aproveitando duas grandes estreias dos realizadores Wes Anderson The Grand Budapest Hotel e Darren Aronofsky – Noah (Noé), numa espécie de homenagem ao estilo de cada um, surgem estes dois vídeos. Um, realçando a profundidade que o som pode transmitir a uma imagem para juntos chegarem a uma emoção que possa ser sentida através do ecrã. O outro, uma perspetiva, uma visão de uma grande mente cujo pensamento só podemos adivinhar através daquilo que ele partilha a partir do seu ponto de vista.


Sounds of Aronofsky



Wes Anderson // Centered

A.A.M.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Poeira primeira do dia

Poeira, primeira do dia, vinda do leste, acompanhada do sol. Temos os punhos e os pés numa profundidade mineral, como aquele carrasco que roubou das rochas a sobrevivência. Pensei que ao fazer calor fosse mais fácil. Agora não. Se o sol entrasse em mim. Mas não, aqui no promontório rebenta ainda a primeira luz. No rio, a água vai assustada. Espero mais um pouco pelo halo superior.

“Desanoiteceu”, e os rurais vão encarreirados, até chegar à ariadne muito fio falta dobar. Desaparece, desfalece na atmosfera o orvalho esganado com os primeiros golpes do sol. Rebenta um cano de escape, um trotar dos cavalos mecânicos que interrompe a écloga nos socalcos.

Augusto ficou para trás da equipa. Plantou-se enquistado nas parras. O homem era tumultuoso e madrugador na bebida. Tinha posto o pé na terra ontem, vindo de Lisboa. Todos os anos secretariava várias vindimas, não era um meritocrático do trabalho, apenas secretariava as vindimas. Mas assim como recolhemos a casa todos os fins de tarde, Augusto voltava da capital onde vivia recolhido nos cartões, ou navegando à vista dos supermercados; caçava esmolas, e agregava-se juntos dos sem-abrigo. Um errante sui generis.

Se Augusto não trabalha ainda vai trabalhar!? Continuamos nesta memória e matéria. Observei agitação e pessoas engalfinhadas em volta das mochilas. Augusto tinha sido acometido por um vómito que levaria um qualquer mortal ao desmaio: de joelhos às pedras.
A minha mochila jazia no chão, alvejada com o suco gástrico. O autor encontrava-se desaparecido. O estupor do homem passava os dias transparente ou contando piadas de humor televisivo rasca: mau gosto e brejeirice. Era óbvio que não tinha feito a pútrida jactância intencionalmente. Mas é humilhante encontrar os nossos objectos derramados por uma maré de vinho tinto e pequeno-almoço parcialmente digerido.

Não se apanham moscas com vinagre. O Augusto estava nas proximidades, mas onde? Alguns minutos depois foi encontrado. Os cães tinham dado com o corpo envolvido em toalhas e cordas, de borco, encovado num fosso de escoamento da água, ao lado do muro da propriedade. Morto de crise hepática, Augusto não voltaria às avenidas de Lisboa.



Paulo Seara, Fevereiro 2013