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segunda-feira, 2 de maio de 2016

Livros que nos devoram, por Luísa Félix (#04/2016)

"Loucura", de Mário de Sá-Carneiro


«Mas afinal o que vem a ser a loucura? Um enigma... Por isso mesmo é que às pessoas enigmáticas, incompreensíveis, se dá o nome de loucos...

Que a loucura, no fundo, é como tantas outras, uma questão de maioria. A vida é uma convenção: isto é vermelho, aquilo é branco, unicamente porque se determinou chamar à cor disto vermelho e à cor daquilo branco. A maior parte dos homens adoptou um sistema determinado de convenções: é a gente de juízo... Pelo contrário, um número reduzido de indivíduos vê os objectos com outros olhos, chama-lhes outros nomes, pensa de maneira diferente, encara a vida de modo diverso. Como estão em minoria, são doidos...»

«Enganaram-se vocês e os médicos com isso a que chamaram loucura. O vosso espírito é demasiadamente acanhado para compreender tudo quanto não seja o comum... o vulgar (...).»
Mário de Sá-Carneiro, Loucura


A grandeza das obras não se mede, como a das pessoas, pelo tamanho. Podemos afirmá-lo acerca de “Loucura”, de Mário de Sá-Carneiro, poeta do “Orpheu”, como Pessoa e Almada Negreiros. A obra, que, na edição que tenho em meu poder, não tem mais de sessenta páginas, foi escrita em 1910, um ano significativo para Portugal, quer política quer socialmente. Talvez por isso traduza pessimismo e desalento face à existência.

A narração faz-se em primeira pessoa por aquele que é o amigo mais íntimo de Raúl Vilar, o protagonista. Raúl é um jovem rico, desocupado, a quem tudo aborrece. O seu temperamento inconstante leva-no a oscilar entre o desalento e as paixões extremas. Não acredita no amor e vê a literatura, em particular a poesia, como manifestação de sentimentalismo lamechas. Contudo, a sua visão do amor muda quando, numa festa, conhece Marcela, por quem desenvolve, inicialmente, um amor platónico, que redunda em amor físico, sobretudo depois do casamento. Esse amor por Marcela, que julga perfeita, leva-o a dedicar-se com afinco à escultura, produzindo algumas obras que fazem dele um artista da moda. Contudo o amor que dedica à esposa não o impede de a trair com uma das suas modelos.

Raúl vive obcecado com a passagem do tempo e com o envelhecimento, com a forma como este contribui para a degradação dos corpos. É esta obsessão que o leva a planear algo que constituirá, na sua óptica, uma forma de preservar a beleza de Marcela, a quem pretende dedicar amor eterno, e uma prova desse amor.

Auxiliado pelas suas memórias e pela leitura de um diário que o amigo deixou, o narrador passa em revista a vida de Raúl desde a infância, numa tentativa de justificar o seu acto, que outros julgaram um sinal de insanidade. Este périplo pela vida do protagonista serve ao narrador para refectir sobre temas como a loucura, o tema central da obra, o amor ou a arte.

Mário de Sá-Carneiro morreu há 100 anos, no dia 26 de Abril de 1916, com apenas 26 anos. Apesar da sua tenra idade e da sua vida curta, o autor deixou uma obra, que sendo breve, revela grande valor estético.


A autora, Luísa Félix, pode ser seguida no seu blogue, Letras são papéis.

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