Pesquisar neste blogue

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Poeira primeira do dia

Poeira, primeira do dia, vinda do leste, acompanhada do sol. Temos os punhos e os pés numa profundidade mineral, como aquele carrasco que roubou das rochas a sobrevivência. Pensei que ao fazer calor fosse mais fácil. Agora não. Se o sol entrasse em mim. Mas não, aqui no promontório rebenta ainda a primeira luz. No rio, a água vai assustada. Espero mais um pouco pelo halo superior.

“Desanoiteceu”, e os rurais vão encarreirados, até chegar à ariadne muito fio falta dobar. Desaparece, desfalece na atmosfera o orvalho esganado com os primeiros golpes do sol. Rebenta um cano de escape, um trotar dos cavalos mecânicos que interrompe a écloga nos socalcos.

Augusto ficou para trás da equipa. Plantou-se enquistado nas parras. O homem era tumultuoso e madrugador na bebida. Tinha posto o pé na terra ontem, vindo de Lisboa. Todos os anos secretariava várias vindimas, não era um meritocrático do trabalho, apenas secretariava as vindimas. Mas assim como recolhemos a casa todos os fins de tarde, Augusto voltava da capital onde vivia recolhido nos cartões, ou navegando à vista dos supermercados; caçava esmolas, e agregava-se juntos dos sem-abrigo. Um errante sui generis.

Se Augusto não trabalha ainda vai trabalhar!? Continuamos nesta memória e matéria. Observei agitação e pessoas engalfinhadas em volta das mochilas. Augusto tinha sido acometido por um vómito que levaria um qualquer mortal ao desmaio: de joelhos às pedras.
A minha mochila jazia no chão, alvejada com o suco gástrico. O autor encontrava-se desaparecido. O estupor do homem passava os dias transparente ou contando piadas de humor televisivo rasca: mau gosto e brejeirice. Era óbvio que não tinha feito a pútrida jactância intencionalmente. Mas é humilhante encontrar os nossos objectos derramados por uma maré de vinho tinto e pequeno-almoço parcialmente digerido.

Não se apanham moscas com vinagre. O Augusto estava nas proximidades, mas onde? Alguns minutos depois foi encontrado. Os cães tinham dado com o corpo envolvido em toalhas e cordas, de borco, encovado num fosso de escoamento da água, ao lado do muro da propriedade. Morto de crise hepática, Augusto não voltaria às avenidas de Lisboa.



Paulo Seara, Fevereiro 2013

Sem comentários: