«- Vou dizer-te como se aprende. Não há outra maneira. Apoia o braço esquerdo na mesa à tua frente, com a mão meio aberta, com o polegar mole, e com a mão direita desenha aquilo que vês, uma vez, duas vezes, mil vezes. Não precisas de modelo nem de professor. Numa mão está tudo. Ossos, movimentos, matérias, proporções, e até pregueados. Confia no que vês. Repete até saberes. Depois faz a mesma coisa com o pé, poisando-o num banquinho; a seguir com a cara, servindo-te de um espelho. Só seguidamente poderás passar para um modelo, para as posições.»
Aos 31 anos, depois de ter
criado a sua obra “David”, Miguel Ângelo Buonarroti é considerado, por muitos,
o melhor artista do seu tempo.
Por falta do prometido pagamento e por ter sido
escorraçado pelo papa, como um indigente, o escultor deixa a meio o monumental
túmulo papal que Júlio II lhe encomendara para a Basílica de São Pedro, ainda
em construção. Como desforra, decide aceitar o pedido do sultão Bayazid, que
lhe promete avultado pagamento em troca de um projecto para uma ponte que ligue
as duas margens do chamado Corno de Ouro. O artista florentino desembarca,
assim, no porto de Constantinopla no dia 13 de Maio de 1506. Esperam-no o
dragomano ou intérprete grego, ao qual o narrador, em diálogo aberto com o
leitor, decide, de improviso, apelidar de Manuel e o rico comerciante florentino
Maringhi, há muito instalado na cidade. Manuel, mais do que um intérprete e um
cicerone, revelar-se-á um amigo.
Enquanto está na cidade, Miguel Ângelo passa grande
parte do seu tempo no quarto que alugou em casa de Maringhi, a desenhar, a
ouvir Manuel a ler poesia persa e a fazer listas aleatórias de palavras, que
regista num caderno. Nasce, entretanto, entre ele e Mesihi, um poeta boémio,
protegido do vizir Ali Paxá, uma amizade. É o poeta, que acaba por desenvolver
pelo florentino um sentimento que excede a amizade, que lhe dá a conhecer as
ruas e os edifícios de Constantinopla, assim como a vida nocturna. Miguel Ângelo
fica fascinado por tudo o que vê, mas a sua atenção centra-se, em particular,
na monumentalidade arquitectónica e ornamental da basílica de Santa Sofia e
numa figura ambígua que supõe ser uma bailarina andaluza. É, aliás, esta figura
que toma, em alguns capítulos, o lugar do narrador e que parece sussurrar, ao
ouvido de um Miguel Ângelo adormecido, palavras de quem sofre um amor não
correspondido.
“Fala-lhes de batalhas, de reis e de elefantes”,
ainda que seja uma obra pouco extensa, de capítulos curtos, revela-se uma
viagem bela e intensa, que nos proporciona o contacto com uma cultura
fascinante e com a obra de um dos maiores vultos da arte do Renascimento. Além
disso, há, na obra, inúmeras referências a técnicas e materiais de pintura. Para
ler de um fôlego.
A autora, Luísa Félix, pode ser seguida no seu blogue, Letras são papéis.
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