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sábado, 2 de abril de 2016

Livros que nos devoram por Luísa Félix (#03/2016)

“Fala-lhes de batalhas, de reis e de elefantes”, de Mathias Énard


«- Vou dizer-te como se aprende. Não há outra maneira. Apoia o braço esquerdo na mesa à tua frente, com a mão meio aberta, com o polegar mole, e com a mão direita desenha aquilo que vês, uma vez, duas vezes, mil vezes. Não precisas de modelo nem de professor. Numa mão está tudo. Ossos, movimentos, matérias, proporções, e até pregueados. Confia no que vês. Repete até saberes. Depois faz a mesma coisa com o pé, poisando-o num banquinho; a seguir com a cara, servindo-te de um espelho. Só seguidamente poderás passar para um modelo, para as posições.»


Aos 31 anos, depois de ter criado a sua obra “David”, Miguel Ângelo Buonarroti é considerado, por muitos, o melhor artista do seu tempo.

Por falta do prometido pagamento e por ter sido escorraçado pelo papa, como um indigente, o escultor deixa a meio o monumental túmulo papal que Júlio II lhe encomendara para a Basílica de São Pedro, ainda em construção. Como desforra, decide aceitar o pedido do sultão Bayazid, que lhe promete avultado pagamento em troca de um projecto para uma ponte que ligue as duas margens do chamado Corno de Ouro. O artista florentino desembarca, assim, no porto de Constantinopla no dia 13 de Maio de 1506. Esperam-no o dragomano ou intérprete grego, ao qual o narrador, em diálogo aberto com o leitor, decide, de improviso, apelidar de Manuel e o rico comerciante florentino Maringhi, há muito instalado na cidade. Manuel, mais do que um intérprete e um cicerone, revelar-se-á um amigo.


Enquanto está na cidade, Miguel Ângelo passa grande parte do seu tempo no quarto que alugou em casa de Maringhi, a desenhar, a ouvir Manuel a ler poesia persa e a fazer listas aleatórias de palavras, que regista num caderno. Nasce, entretanto, entre ele e Mesihi, um poeta boémio, protegido do vizir Ali Paxá, uma amizade. É o poeta, que acaba por desenvolver pelo florentino um sentimento que excede a amizade, que lhe dá a conhecer as ruas e os edifícios de Constantinopla, assim como a vida nocturna. Miguel Ângelo fica fascinado por tudo o que vê, mas a sua atenção centra-se, em particular, na monumentalidade arquitectónica e ornamental da basílica de Santa Sofia e numa figura ambígua que supõe ser uma bailarina andaluza. É, aliás, esta figura que toma, em alguns capítulos, o lugar do narrador e que parece sussurrar, ao ouvido de um Miguel Ângelo adormecido, palavras de quem sofre um amor não correspondido.

“Fala-lhes de batalhas, de reis e de elefantes”, ainda que seja uma obra pouco extensa, de capítulos curtos, revela-se uma viagem bela e intensa, que nos proporciona o contacto com uma cultura fascinante e com a obra de um dos maiores vultos da arte do Renascimento. Além disso, há, na obra, inúmeras referências a técnicas e materiais de pintura. Para ler de um fôlego.


A autora, Luísa Félix, pode ser seguida no seu blogue, Letras são papéis.

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