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quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Livros que nos devoram por Luísa Félix (#01/2015)


Arthur & George


«George encontra, no percurso diário até à cidade, uma coisa ao mesmo tempo séria e reconfortante. Há uma viagem, há um destino (...). O caminho-de-ferro sugere como deveria ser, como podia ser: um encontro suave até um término, sobre carris regularmente espaçados e segundo um horário estabelecido (...). Talvez seja por isso que George sente uma fúria silenciosa, quando alguém procura danificar o caminho-de-ferro. Há rapazes - homens, talvez - que aplicam lâminas e facas às correias de couro junto às janelas; que atacam estupidamente os caixilhos das molduras por cima dos assentos; que se atardam nas pontes pedonais e tentam deitar tijolos para dentro da chaminé da locomotiva. Tudo isso é incompreensível para George. Pode parecer um jogo inofensivo colocar um penny num carril e vê-lo achatar, ganhar o dobro do diâmetro, após a passagem do expresso; mas George vê nisso uma inclinação traiçoeira, que faz descarrilar comboios.»



BARNES, Julian, Arthur and George, Edições Asa


Arthur & George é um romance de Julian Barnes, um dos mais populares autores ingleses da actualidade. A obra, publicada em 2005, parte de uma situação ocorrida no século XIX, que ficou conhecida no Reino Unido como “Os ultrajes de Great Wyrley”. O incidente fez com que as existências de George Edalji, um solicitador de ascendência indiana, que tenta vingar na Inglaterra conservadora de então, e de Arthur Conan Doyle, criador do famoso Sherlock Holmes, se tenham cruzado.

Ainda que recupere alguns dos ingredientes do romance policial, levando-nos a acompanhar Sir Arthur na busca de pistas que possam ilibar George, a narrativa de Julian Barnes não é um romance policial, antes, talvez, um romance de personagem, que combina a narrativa com os géneros epistolar, jornalístico e biográfico.

Nela, os acontecimentos são pretexto para se expor a interioridade das personagens, os seus dilemas morais, a crueldade humana motivada por preconceitos raciais. A obra parece constituir um ponto de partida para o escritor reflectir sobre as idiossincrasias da sociedade inglesa, aquilo que é o perfil do homem inglês, o papel do escritor, bem como sobre o confronto entre a ficção e a realidade.

George, filho de um vigário pársi e de uma escocesa, é educado num ambiente fechado, tornando-se um rapaz educado, obediente, crente e reservado, incapaz de dar resposta às provocações de que é vítima por parte dos colegas, que o vêem como um ser estranho. Graças a esta “estranheza” e à cor da sua pele, a polícia não hesita em atribuir-lhe a responsabilidade pelas atrocidades bizarras cometidas contra alguns animais da vizinhança.

Já na prisão, George decide escrever a Sir Arthur Conan Doyle, que admira, pedindo-lhe que analise o seu caso, para que possa provar a sua inocência.

Arthur decide aceder ao pedido de George e, assumindo o papel de Sherlock Holmes, analisa pistas, confronta documentos, vasculha o passado do solicitador para compreender a sua personalidade, evidenciando as falhas e preconceitos da sociedade, da polícia e da justiça inglesas, que conduziram a vítima à prisão.

A consistência da obra resulta não só da intriga ou das referências, quer históricas, quer literárias que a perpassam, mas também da limpidez da linguagem e da forma como a narrativa se entretece – nas duas primeiras partes, enquanto as vidas das personagens não se cruzam, os capítulos, intitulados alternadamente de “George” e de “Arthur”, surgem como narrativas distintas, protagonizadas por personagens independentes.


A autora, Luísa Félix, pode ser seguida no seu blogue, Letras são papéis.

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