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quarta-feira, 24 de junho de 2015

Livros que nos devoram por Luísa Félix (#05/2015)

(Depois de um hiato forçado no mês anterior, e pelo qual pedimos desculpa, Livros que nos devoram está de regresso à Pomar de Letras.)



A Porta, de Magda Szabó



 
Quando estudante universitária, detestava Schopenhauer; mais tarde, compreendi que devia reter
da sua teoria que qualquer relação sentimental é uma possibilidade de agressão, e, quanto mais deixo um homem aproximar-se, mais vias se abrem pelas quais o perigo me pode atingir. Não me foi fácil admitir que eu devia, para mais, contar com Emerence, a sua existência tornara-se uma das componentes da minha vida e, no início, fiquei apavorada com a ideia de a perder, se lhe sobrevivesse, o que aumentaria o meu exército de sombras, cuja presença imanente e intangível me perturba e me mergulha no desespero.

Esta tomada de consciência em nada se modificou pelo comportamento de Emerence, variando segundo um número incalculável de chaves: por vezes, ela tratava-me de um modo tão rude que um estranho, se assistisse, se espantaria porque tolerava isso. Tal não contava: há muito que eu já não prestava atenção aos movimentos tectónicos que agitavam a superfície de Emerence; ela deve ter descoberto o mesmo, e, por mais que não quisesse arriscar o coração, (...) também ela não podia escapar à sua afeição por mim.


Magda Szabó, A Porta, Dom Quixote


Magda Szabó nasceu em 1917 e faleceu noventa anos depois, na Hungria. Durante o regime comunista, os livros da autora foram proibidos, regressando às livrarias no fim dos anos 50. A Porta, única obra da romancista traduzida para português, foi publicada em 1987 e adaptada ao cinema, com o título Atrás da Porta, em 2012.

A acção da obra tem início no período posterior à 1.ª Guerra Mundial, prolongando-se por algumas décadas. A narradora, Magda, uma jovem escritora, decide procurar uma governanta que a liberte do trabalho de casa, para poder dedicar-se à escrita. Alguém lhe recomenda Emerence. Esta aceita, mas impõe, desde logo, as suas regras.

Emerence, que teve um passado traumático, que procura, a todo o custo esconder e esquecer, mas que a persegue, revela-se austera, frontal, intempestiva, de trato difícil, mas, ao mesmo tempo, e contraditoriamente, generosa e compassiva, com animais e pessoas. Trabalha como doméstica em casa de Magda, passeia o cão, mas sobra-lhe tempo para limpar a neve ou as folhas da entrada de todas as casas da rua, para fazer comida para os vizinhos doentes, para tratar com carinho e zelo os gatos abandonados que acolhe em sua casa.

A velha senhora não permite que alguém entre em sua casa – concessão que faz um dia a Magda e, desde sempre, a um tenente-coronel amigo -, recebendo aqueles que a visitam ou que ela convida no pátio, não deixando, contudo de ser uma boa anfitriã, pois oferece chá e comida.

Emerence desdenha do Deus de Magda, da sua devoção à religião. Desvaloriza, igualmente, o trabalho intelectual, como se manifesta sempre contra o Estado, a Igreja e instituições de caridade. Considera Magda e o marido uns inúteis por não realizarem trabalhos que impliquem esforço físico. Pega nos livros de Magda, como em qualquer objeto de decoração, apenas para lhes limpar o pó.

Apesar do carácter estranho de Emerence, do seu temperamento quase intratável e da forma agressiva como chega a tratar as pessoas à sua volta, em particular Magda, todos a estimam e valorizam a sua disponibilidade, competência e generosidade. Entre ela e Magda, em particular, desenvolve-se um sentimento profundo, que é uma mistura de amizade, de admiração mútua e de mágoa.

A Porta revela-se uma obra sublime, pela intriga, pelo estilo, pelo que tem de documental, mas, sobretudo, porque constitui uma homenagem à amizade e uma análise minuciosa – ainda que dolorosa – das relações humanas. Uma leitura a considerar.


A autora, Luísa Félix, pode ser seguida no seu blogue, Letras são papéis.

1 comentário:

Anónimo disse...

Na verdade, a falha foi minha. Sou eu quem deve pedir desculpa. :)

Luísa