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quarta-feira, 29 de julho de 2015

Livros que nos devoram por Luísa Félix (#06/2015)

Navegador Solitário, de João Aguiar


Tudo começa no dia em que Solitão, o protagonista e narrador de Navegador Solitário, de João Aguiar (Lisboa, 1943 – Lisboa, 2010), completa quinze anos. Nesse dia, depois de ter servido os jantares no restaurante da família, Solitão assiste a uma sessão espírita, na qual o avô defunto, que usa a madrinha como intermediária, o incentiva a escrever um diário. Solitão, que não morre de amores pela escola e que se exprime num português carregado de erros e de calão, começa a escrever o seu diário nessa mesma noite, receoso de eventuais represálias. Este não é, contudo, um diário convencional, pois faltam-lhe os habituais cabeçalhos, com data e/ ou local. A evolução temporal é, em contrapartida, assinalada com espaços e asteriscos.

À medida que avançamos na leitura da obra, vamos conhecendo os medos e os anseios do jovem protagonista, bem como as suas lutas com as hormonas. Ao mesmo tempo, apercebemo-nos de que se dá um progressivo amadurecimento da personagem e uma melhoria considerável na forma como se exprime, sobretudo a partir do momento em que se apaixona e convive intimamente com Teresa, a professora de Português. É também graças a Teresa que Francisco, o nome pelo qual o jovem prefere ser tratado, acrescenta os seus conhecimentos de música e de literatura e exibe, sem pudor, a sua ternura.

Ao fim de algum tempo, o Solitão terno e ingénuo dá lugar a um homem materialista, um navegador solitário na sociedade dos finais do século XX, que troca o amor por uma vida confortável.


«Eu hoje faço quinze anos mas era melhor que não os fizesse. Tive um dia lixado e pra começar o meu velho obrigou-me a trabalhar no restaurante a servir os almoços e eu nunca gosto de lá trabalhar mas no dia dos anos é pior que nos outros dias e depois a velha não me deixou sair à noite com o Angelino e a outra malta porque apareceram visitas e no fim de tudo ainda tive de começar a escrever esta merda do diário ou lá como lhe chamam e eu não gosto nada de escrever não me importo de ler porque há a Bola e há os livros de caubóis mas escrever isso é mesmo contra vontade porque é uma chatice e a gente ainda tem de pôr vírgulas mas eu vírgulas não vou nessa não ponho que se lixe.»

João Aguiar, Navegador Solitário, Edições Asa


A autora, Luísa Félix, pode ser seguida no seu blogue, Letras são papéis.

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