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sábado, 15 de agosto de 2015

Cidadão Nemo por Paulo Seara [(#07/2015) Peça Íntegral]

(Em dia de última cena de Cidadão Nemo, a Pomar de Letras publica na íntegra as 7 cenas desta peça em 1 acto, para ler e apreciar duma acentada.)


Cidadão Nemo
Peça em 1 Acto

Por Paulo Seara




Cena 1 (Medicamentos)


Um terço da luz ilumina o quarto. Na penumbra quase total, um homem dorme, dentro de um enorme fatia de cobertores. O conforto do sono não será perturbado pelo ruído agudo da telefonia? Estará a dormir? Do quanto se consegue vislumbrar o mobiliário enegrecido, com algumas mossas, e cortes na madeira lacada. Há no ar o cheiro da urina; e o bafo retido no cubículo; o cotão com pó que petrifica o chão debaixo da cama. O relógio dispara, que é hora de tomar os comprimidos para adormecer. O homem está alerta, tosse e ergue-se, ilumina a dose habitual e deita-se novamente com os comprimidos se desfazendo nas entranhas. O rádio continua pela madragoa tocando, como se fosse a luz de vigília de crianças.

Monólogo ao tomar os comprimidos

Semedo: Este vou guardar para amanhã e este também, que a vida está cara, e porque preciso de dinheiro para o talho; e comprar as aparas é o que é! (Pausa). São horas … (tosse) … são só mais estes dois, e assim só de amanhã a oito é que compro uma nova caixa … (tosse). (Pausa) E tu vai tocar para a puta que te pariu (desliga o alarme, e volta a deitar-se).


Cena 2 (Diálogo com a encarregada do senhorio)


A cena decorre na cozinha, um espaço iluminado por uma luz suspensa, vislumbra-se parte da mesa, da porta em frente sai uma iluminação em contra luz, por aí saí a encarregado do senhorio.

Sr.ª Rosália: Oh, senhor Semedo! Afinal temos novamente as nódoas no chão da casa de banho… são pingas de mijo!

Semedo: O chão é a terra, minha senhora (ironizando a situação).

Srª Rosália: Senhor Semedo (pausa), sei que é uma pessoa simples, mas seja asseado, pois existem outras pessoas na casa…

Semedo: A senhora está a pensar que sou eu, mas não viu!

Srª Rosália: Não estou aqui para ver as vergonhas do próximo… Sabe bem que temos que ser uns para os outros; e o senhor tem que ter mais cuidado com estas situações. Se for você! Está manhã estive a limpar a casa de banho, depois voltei a entrar lá, porque me tinha esquecido do pano do pó, e deparo-me com pingas de mijo nos azulejos, meus não seriam, pois não ando a regar em pé, e como mais ninguém aqui estava, deduzo que seja o senhor. Tenha cuidado, e estime as coisas.

Semedo: (Desvia o olhar para o lado ao mesmo tempo que abaixa o queixo).

Srª Rosália: Estime as coisas, é o meu conselho!!!

Semedo: Eu vou ter mais cuidado. Mas anteontem por causa do ralo da banheira chamou-me à atenção, e eu não tinha nada que ver com o assunto. Até parece que se lá andam a rapar… a rapar… imagine.

Srª Rosália: Olhe, senhor Semedo, o melhor é ficarmos por aqui. Desculpe o incómodo ao jantar. Eu me vou, que tenho de tratar do meu!

(Pausa)

Semedo: Raios a partam, que limpe, pois eu pago-lhe!

(Recebe uma mensagem no telemóvel)

Mas quem és tu, olha-me este agora, está bem que te chames Gomes, mas não te conheço… Oh! vou para onde…às… É mas é maluco! É mas é maluco…

(O tipo liga)

Estou… mas… ah! sim, mas deve estar enganado…ah! sério que sim. Não me chateie, tente outro número.

(Pausa)

Queria o maluco, sair, pensa que tenho 20 anos, e que vou pagar-lhe alguma puta. Eu estive a combater… sei o que são as putas… e as infecções…. Que vá para o caralho!

(Pausa)

(Observa a televisão, e faz diversos zappings, sucessivamente, até ao abrupto blackout))

Petróleo e mais petróleo, isso é lá fora.

(Pausa)

Comer aqui é que é poupar, um tacho dá para 4 dias…


Cena 3 (Medicamentos)


Um terço da luz ilumina o quarto. Na penumbra quase total, um homem dorme, dentro de um enorme fatia de cobertores. O conforto do sono não será perturbado pelo ruído agudo da telefonia? Estará a dormir?
Do quanto consegue vislumbrar-se o mobiliário enegrecido, com algumas mossas, e cortes na madeira lacada. Há no ar o cheiro da urina; e o bafo retido no cubículo; o cotão com pó que petrifica o chão debaixo da cama. O relógio dispara, que é hora de tomar os comprimidos para adormecer. O homem está alerta, tosse e ergue-se, ilumina a dose habitual e deita-se novamente com os comprimidos se desfazendo nas entranhas. O rádio continua pela madragoa tocando, como se fosse a luz de vigília de crianças.

Monólogo ao tomar os comprimidos.

Semedo: Este vou guardar para amanhã e este também, que a vida está cara, e porque preciso de dinheiro para o talho, e comprar as aparas é o que é!. São horas … (tosse) … são só mais este dois, e assim só de amanhã a oito é que compro uma nova caixa … (tosse).


(Pausa)


E tu vai tocar para a puta que te pariu (desliga o alarme, e volta a deitar-se).


Cena 4 (Diálogo com a encarregada do senhorio)


A cena decorre na cozinha, um espaço iluminado por uma luz suspensa, vislumbra-se parte da mesa, da porta em frente sai uma iluminação em contra luz, por aí sai a encarregado do senhorio.

Sr.ª Rosália: Oh senhor Semedo, afinal temos novamente as nódoas no chão da casa de banho… são pingas de mijo!

Semedo: O chão é a terra, minha senhora (ironizando a situação).

Srª Rosália: Senhor Semedo, sei que é uma pessoa simples, mas seja asseado, pois existem outras pessoas na casa…

Semedo: A senhora está a pensar que sou eu, mas não viu!

Srª Rosália: Não estou aqui para ver as vergonhas do próximo… Sabe bem que temos de ser uns para os outros; e o senhor tem de ter mais cuidado com estas situações. Se for você! Está manhã estive a limpar a casa de banho, depois voltei a entrar lá, porque me tinha esquecido do pano do pó, e deparo-me com pingas de mijo nos azulejos, meus não seriam, pois não ando a regar em pé, e como mais ninguém aqui estava, deduzo que seja o senhor. Tenha cuidado, e estime as coisas.

Semedo: (desvia o olhar para o lado ao mesmo tempo que abaixa o queixo)

Srª Rosália: Estime as coisas, é o meu conselho!!!

Semedo: Eu vou ter mais cuidado. Mas anteontem por causa do ralo da banheira chamou-me à atenção, e eu não tinha nada que ver com o assunto. Até parece que se lá andam a rapar…a rapar… imagine…

Srª Rosália: Olhe Senhor Semedo o melhor é ficarmos por aqui. Desculpe o incómodo ao jantar. Eu me vou, que tenho que tratar do meu!

(Pausa)

Semedo: Raios a partam, que limpe, pois eu pago-lhe!

(Recebe uma mensagem no telemóvel)

Mas quem és tu, olha-me este agora, está bem que te chames Gomes, mas não te conheço… oh, vou para onde…às… é mas é maluco! É mas é maluco…

(O tipo liga)

Estou… mas… ah! sim, mas deve estar enganado…ah! sério que sim. Não me chateie, tente outro número.

(Pausa)

Queria o maluco, sair, pensa que tenho 20 anos, e que vou pagar-lhe alguma puta. Eu estive a combater… sei o que são as putas… e as infecções…. Que vá para o caralho!

(Pausa)

Petróleo e mais petróleo, isso é lá fora!

(Pausa)

Comer aqui é que é poupar, um tacho dá para 4 dias…

(Observa a televisão, e faz diversos zappings, sucessivamente, até ao abrupto blackout))


Cena 5 (A visitante)


Dentro do quarto com a parca iluminação, o telemóvel toca…

Semedo: Olá bom dia, ligas-me… és tu, parecia a voz da tua mãe… nem sabes o tempo que passou. Sim o local é bom, para o preço que é, é razoável. Queres saber se deixei aí alguma coisa? Vens cá amanhã, oh, sou assim tão importante para ter visitas. Tinhas medo… porque a rua era de má fama. Está bem… Traz então, se tendes uma a mais, que eu deixo no quarto… aqui há uma na saleta, não é grande coisa mas o sofá é bom! Se não pergunto nada… tu, é que estás aí, tu é que me podes trazer notícias. Estou bem, estou bem. Quero que saibas, que nem tu nem eu! Não estão mais amaciados… ora não vou perder o sono com isso. Nem tu nem eu! Sim! Mas podes ter a certeza que não vão mais roubar do meu prato! Tens de ir… está bem. Tudo está conversado, nada há mais, mais nada… Amanhã á tarde cá espero. É na Viela de São João, número 21, 2 º andar. Sim… sim… há intercomunicador… Adeus, boa viagem!

Galdéria, andas a estudar ecologia, aqui perto. Os teus pais é que são culpados. Se um gajo tivesse filhos…. se um gajo… mas sei lá, ainda saíram como os meus irmãos e irmãs. Chupistas dum raio, até os emigrados. A galdéria. Tenho aqui duas televisões, não preciso que me venhas trazer uma lata qualquer, e passear as mamas!

(Pausa)

Estou sim. Só depois de amanhã. Estimo-lhe as melhoras, não te esqueças de lhe dizer. Não faz mal. Nenhum. Vais ver que ainda te vai dar mais do que pensas, não sabes o que ela pensa de ti a sério. Está velha é o que é! Então adeus… e até breve.

És como a tua mãe, que só pensava em bailes, e dos dias felizes á moda antiga.

(Fade out)


Cena 6 (O outro está no sofá a ver a televisão boa)


Semedo: Ainda lá está… se pudesse… tirava uma cavilha, e acabava com ele, mas não estamos no mato.

(Pausa)

Quase que me viu… Lá continua, que animal. Pensas que isto fica assim… eu sei que queres fazer o comer, e não vai demorar muito.

(Pausa)

(Depois de ganhar coragem, aproxima-se do outro)

Não vai jantar, não vai ou já comeu fora… o fogão já está livre, se quiser faça o jantar, faça o jantar.

Outro: Ao jantar eu ainda não vou já…!

Semedo: Vai lá fora?!

Outro: Não, estou a dizer que vou jantar quando entender…, vou assim que entender!

(Semedo recua até aos aposentos, depois entra na cozinha e arreda um banco para se sentar, vê televisão. A cabeça está sobrelevada. A televisão abre uma fresta de luz.)

(Pausa)

(O Outro, despega-se do sofá, e passivamente entra na cozinha onde procura ingredientes. Sai novamente, procurando o isqueiro. Semedo deve-o ter com ele por asco. Semedo sai depois, inflecte para o quarto, disfarçadamente, e retoma o caminho para o sofá.)

(Fade out)


Cena 7 (Medicamentos)


Um terço da luz ilumina o quarto. Na penumbra quase total, um homem dorme, dentro de uma enorme fatia de cobertores. O conforto do sono não será perturbado pelo ruído agudo da telefonia? Estará a dormir? Do quanto se consegue vislumbrar o mobiliário enegrecido, com algumas mossas, e cortes na madeira lacada. Há no ar o cheiro da urina; e o bafo retido no cubículo; o cotão com pó que petrifica o chão debaixo da cama. O relógio dispara, que é hora de tomar os comprimidos para adormecer. O homem está alerta, tosse e ergue-se, ilumina a dose habitual e deita-se novamente com os comprimidos se desfazendo nas entranhas. O rádio continua pela madragoa tocando, como se fosse a luz de vigília de crianças.

Monólogo ao tomar os comprimidos

Semedo: Este vou guardar para amanhã e este também, que a vida está cara, e porque preciso de dinheiro para o talho, e comprar as aparas é o que é!. São horas … (tosse) … são só mais este dois, e assim só de amanhã a oito é que compro uma nova caixa … (tosse). (Pausa) E tu vai tocar para a puta que te pariu (desliga o alarme, e volta a deitar-se).


Anotações


Cidadão Nemo é a constituição da decadência nos seus últimos patamares, de um cidadão ninguém, num mundo em que todos são nada, e em que esse nada nem entra no mundo. Para fazer parte do mundo é preciso ser livre.

A peça é um passo que antecede a caminhada para um quarto mais pequeno que é o caixão. Existirá ainda lugar para auto-avaliação, regressão, e partilha? A casa de hóspedes; uma casa de respeito, é o primeiro estágio do fim. E o fim muda tudo? Cidadão Nemo é um quadro de Schopenhauer, e o modo como ele acabaria nos dias de hoje, encostado ao medo vindo dos actos de uma encarregado de um senhor visível: um deus económico que usa fraque negro, e que se está a borrifar para a escadaria de deficiências que acompanha os habitantes daquele aquário mal cheiroso.

As cenas são repetitivas pois nada vai mudar, o que podia ter sido a mudança morreu com a idade adulta. Não se vive com um propósito, mesmo que seja a boémia mais grave; vive-se com o ácido úrico e a sensação crespa quando acontece alguma coisa que desvia tudo do caminho natural das coisas. O caminho natural das personagens. O Cidadão Nemo, que já nem acredita na democracia, se alguma vez acreditou, tem apenas um motivo que o revolve quando torce pelo juro baixo, a renda, e uma reforma digna de um grande poeta como Luís de Camões.

Quanto á parte técnica e cenográfica, espero que as informações patentes nas didascálias bastem para realizar o corpo desta peça. Tudo deve ser respeitado para criar o ambiente, dos cheiros ás luzes. Bem sei que pode ser desagradável, mas quero que a mensagem desta peça não alastre como um poema de livre apreciação. O texto não revela nenhum segredo, somente a banalidade repetida até o último grito
cardíaco.


Paulo Seara
23/ 05/06

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