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quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Livros que nos devoram por Luísa Félix

Tertúlia de Mentirosos


Com Tertúlia de Mentirosos, Jean-Claude Carrière pretendeu escrever, como o próprio escreveu no
prefácio da obra, criar o seu próprio manual de filosofia, numa linguagem que fosse acessível. Para tal, recolheu, ao longo de vinte e cinco anos, contos do mundo inteiro, que organizou em vinte e um capítulos temáticos.

Os contos, anónimos e muito diversos na extensão – alguns ocupam várias páginas, outros resumem-se a um parágrafo -, traduzem a sabedoria e a filosofia de diferentes povos dos diferentes continentes. Uns resultam inquietantes, outros ambíguos. Uma grande parte dessas narrativas surpreende pelo final inusitado, outras divertem pelo que têm de anedótico.

No início do prefácio, Jean-Claude escreveu: «Como as minhocas que, ao que se diz, fecundam a terra, que atravessam cegamente, as histórias passam de boca em boca e dizem, há já muito, o que nada mais sabe dizer. Algumas giram e enroscam-se no seio de um mesmo povo, outras, como feitas de uma matéria subtil, perfuram as muralhas invisíveis que nos separam uns dos outros, ignoram o tempo e o espaço e, simplesmente, perpetuam-se.»

Esperando que possa abrir-vos o apetite para a leitura desta obra e que algumas das histórias que a integram possam, pela leitura ou pelo reconto, perpetuar-se, deixo aqui um exemplo:


A vaca branca e a vaca preta


                A história seguinte, que deve ser dita ou lida lentamente, conta-se no País Basco espanhol. (...)
                Um camponês tranquilo e taciturno guardava duas vacas que pastavam num prado e não faziam mais nada.
                Outro camponês, que passou por ali, sentou-se num murete, na orla do prado, ficou um momento calado (nesta região as conversas são lentas e reflectidas) e por fim perguntou:
                - Comem bem as vacas?
                - Qual?- disse o outro.
                O camponês de passagem, um tanto desconcertado por esta pergunta, disse então, mais ou menos ao acaso:
                - A branca.
                - A branca, come. - disse o primeiro.
                - E a preta?
                - A preta também.
                Após este primeiro diálogo, os dois homens ficaram bastante tempo sem falar, olhos postos na paisagem familiar, as montanhas, a aldeia.
                Depois o segundo camponês perguntou:
                - Dão muito leite?
                - Qual?- disse logo o outro.
                - A branca.
                - A branca dá.
                - E a preta?
                - A preta também.
                Seguiu-se outro silêncio que durou tanto tempo como os anteriores. Enquanto (...) os dois homens não olharam um para o outro. Só se ouvia o ruído pacífico das duas vacas comendo erva.
                O segundo camponês abandonou finalmente o silêncio e disse:
                - Mas por que me perguntas sempre «qual»?
                - Porque - respondeu o primeiro - a branca é minha.
                - Ah - disse o outro.
                Reflectiu mais um pouco e perguntou, para terminar, não sem uma secreta apreensão.
                - E a preta?
                - A preta também.



Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos


A autora, Luísa Félix, pode ser seguida no seu blogue, Letras são papéis.

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